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Eu, Mark Twain e Os Deuses do Sebo

© Rosana Rios


          Eu devia ter uns dez anos quando achei, num canto de casa, um livro amarelado que provavelmente tinha pertencido ao meu falecido avô. Naquela época, eu já era louca por livros. Infelizmente tínhamos bem poucos e eram relidos dezenas de vezes. Custavam muito caro; eu só podia pedir um livro aos meus pais no Natal ou no aniversário, e olhe lá... Uma vez, desesperada para ler algo diferente, peguei a Bíblia da minha mãe e li inteirinha.
          Por isso, foi uma alegria encontrar aquele volume. Um livro novo para mim! Chamava-se “Aventuras de Huck” e o autor tinha um nome bizarro: Mark Twain. Editado em 1934 e traduzido por Monteiro Lobato, que já era meu autor preferido...
          Devorei a história. Tinha tudo a ver comigo, apesar de pertencer a uma realidade totalmente diferente. O que haveria em comum entre uma garota urbana, morando em São Paulo nos anos 1960 e um órfão vivendo no Mississipi na época da escravidão nos Estados Unidos? Apesar disso, eu me identifiquei instantaneamente com o personagem, que narrava em primeira pessoa sua vida de garoto solitário, tentando sobreviver num ambiente hostil. O texto transbordava de ironia, criticando veladamente a sociedade sulina de mentalidade estreita, fundamentalista e escravocrata, apesar da inocência do narrador.
          Eu ria sozinha, alto, em muitos trechos da narrativa. Minha mãe ia me olhar um tanto preocupada, como quem diz “o que deu nessa menina?”

          Apaixonei-me pelo autor e desejei ler mais obras dele – desde os oito anos tinha essa mania, quando gostava de um livro. A lista de obras desejadas crescia assustadoramente, eu continuava ganhando só um ou dois livros por ano... E Mark Twain era quase um desconhecido, na época. Ninguém que eu conhecia tinha obras dele para emprestar, nem a biblioteca do colégio.
          Tempos depois, meu pai achou numa banca de jornal uma edição barata de “Tom Sawyer”, recém-publicada pela Abril Cultural. Eu já havia descoberto que “Huck” era uma sequência desse, e me agoniava não ter lido o primeiro livro. Graças a ter falado muito no autor a papai, ele se lembrou do nome e finalmente pude ler o início da aventura de Huck, Tom e Jim. Naqueles anos um tio meu também me conseguiu uma edição antiga, sem capa, que contava uma viagem dos mesmos personagens em um balão; agora sei que o título original era “Tom Sawer Abroad”. E, num aniversário, ganhei de presente “O Príncipe e o Mendigo”. Outra realidade, outro tempo e outro país, mas a mesma ironia subjacente. Eu amava cada vez mais aquele sujeito que, havia descoberto, na verdade se chamava Samuel Langhorne Clemens.
          Já possuía, então, quatro livros de Mark Twain na minha bagagem de leituras. Mas eu queria mais. As pesquisas me diziam que ele tinha escrito muito, inclusive um que eu estava doida para ler: “Um Ianque na Corte do Rei Artur”. Tentei encontrar esse nas bibliotecas, com todas as amigas, os leitores da família, e nada. Fui às livrarias do bairro, disposta a juntar meses de mesada para comprar. Disseram que não havia edições em português dessa obra.
          Porém, a essa altura eu já era adolescente e frequentava sebos. Tinha descoberto a paixão por fuçar em estantes confusas e descobrir tesouros escondidos... Minha última aquisição tinha sido uma coleção de Alexandre Dumas em volumes pequenos, ortografia antiga e páginas amarelas.
          Então, com o desejo por aquele livro entalado na garganta, resolvi recorrer ao sobrenatural. Numa conversa com Deus, pedi que, de alguma forma, eu conseguisse encontrar o “Ianque” para ler. Não tinha grandes desejos na vida. Queria só obter livros legais para me deliciar com eles.
          Alguns meses depois desse pedido mental, estava eu no centro de São Paulo, encaminhando-me ao ponto do ônibus para voltar ao meu bairro, quando passei diante daquele mesmo sebo onde havia comprado a série de Dumas. E na vitrine, junto à calçada, estava o livro.

          Voltei para trás, sem poder acreditar. Era ele mesmo. “Um Ianque na Corte do Rei Artur”. Maltratado e amarelado, ali, à minha espera. Catei os trocados na bolsa e consegui comprar...
          Depois de agradecer a Deus, aos anjos, espíritos, deuses ou a quem quer que tivesse colocado aquele livro em meu caminho, peguei meu ônibus, eufórica, e já comecei a ler na condução. Um sonho realizado.

          Foi depois disso que percebi que, sempre que eu precisava de material de leitura específico, tudo que precisava fazer era percorrer os sebos. Não chamava os vendedores: era só me dirigir, mentalmente, aos Deuses do Sebo. Alguma coisa ou alguém invisível me levava às prateleiras certas, nas costumeiras salinhas lotadas de pilhas empoeiradas. E encontrava aquilo que me serviria, a preços que podia pagar; mesmo que não fosse o que eu queria, sempre era algo que seria útil. Mas, se contasse a alguém sobre minha crença nos Deuses do Sebo, ou riam ou me olhavam com a expressão a que eu já estava acostumada: “essa é doida, coitada”.
          Reli várias vezes o “Huck”, que foi meu preferido bem antes de eu descobrir que esse é considerado um dos maiores clássicos, senão o mais importante marco, da literatura norteamericana. Tive até a alegria de ver o escritor transformado em personagem em um episódio maravilhoso de “Jornada nas Estrelas: a Nova Geração”.
          E, um dia, sei lá por quê, quis tirar a limpo minha hipótese sobre a existência dos Deuses do Sebo. Uns quarenta anos haviam se passado desde aquele primeiro encontro com o “Ianque”. E eu estava no centro de São Paulo de novo, mas aquele meu querido sebo já não existia, tinha virado lanchonete. Dei com um diferente, em que nunca havia entrado.
          Sorri comigo mesma. Pedi: “Deuses do Sebo, se vocês existem de verdade, me levem ao livro que preciso ler”.
          Entrei. Percorri sem rumo os corredores estreitos, sem pressa, até que uma estante me chamasse a atenção. E, lá no fundo, vi uma prateleira cheia de volumes encadernados, com um único livro detonado e sem capa no meio dos mais bonitinhos.
          “É aquele”, disse a mim mesma. Fui direto para a estante e puxei o livro que compraria.
          Era uma edição em português da “Autobiografia” de Mark Twain. Eu nem sabia que ele havia escrito isso, pouco antes de morrer. Uma obra deliciosa de ler, em que reencontrei meu ídolo com toda a sua inteligência e ironia! Claro, a crença no poder dos sebos e seus deuses só aumentou.

           Mas minha história com Samuel Clemens não havia terminado. Em 2013, após uma visita à Feira do Livro de Frankfurt, meu marido e eu fomos visitar uma prima que mora no norte da Alemanha. Estávamos passeando pela bela cidade medieval, quando, sobre uma das pontes que atravessam o rio Ilmenau, vi um desses peculiares bancos de ferro com uma escultura humana em tamanho natural, sentada como se olhasse o fluir do rio. Parei. Olhei a estátua. Achei que se parecia com Mark Twain... Porém, eu devia estar enganada. Por que um escritor do sul dos Estados Unidos seria homanegeado com uma escultura numa pequena cidade alemã? Não havia placa identificando a obra. Perguntas sobre aquilo resultaram na resposta “Parece que é um escritor”. E fui pesquisar.

           Encontrei fotos da estátua e descobri não só que era ele mesmo, mas que havia um livro – consegui em formato e-book – chamado “A tramp abroad”, em que Twain conta de forma romanceada uma viagem que fez à Europa, incluindo aí várias cidadezinhas alemãs... Estava solucionado o mistério.

           Entretanto, eu sei que Clemens – ou os Deuses do Sebo – ainda guardam surpresas para mim no futuro. Ainda lerei muitas obras desse autor, e mal posso esperar para saber o que elas conterão em suas páginas – sejam amareladas ou virtuais!

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