Pequena Introdução à Literatura Fantástica
© Rosana Rios
Não há povo e não há homem que possa viver sem ela [a literatura], isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado [...] a literatura é o sonho acordado das civilizações.
Antonio Cândido. O direito à literatura. In: Vários escritos.
São Paulo: Duas Cidades, 1995.
A Literatura é um fenômeno social/cultural nascido de gêneros milenares que permanecem vivos, apesar da passagem dos séculos, em especial as narrativas da mitologia. Em geral cada civilização passada gerou os mitos ligados às crenças de seu povo e às suas maneiras de ver o mundo. Entrelaçados com o desenvolvimento da linguagem e da filosofia, as narrativas mitológicas constituem-se, grosso modo, em relatos sobre deuses, heróis e antepassados, e estruturam-se em torno de arquétipos – os modelos ideais que permanecem até hoje no inconsciente humano, segundo a psicologia Junguiana.
Com o passar do tempo, as narrativas religiosas que constituíam os mitos perderam seu valor sagrado para nós, mas permaneceram nas narrativas profanas que continuaram na boca do povo, mudando de forma, emigrando para novas terras, revestindo-se de novas roupagens e adereços.
Assim nasceram, no Ocidente, os relatos que hoje chamamos contos de fadas, contos maravilhosos ou contos folclóricos; mora neles o que restou dos elementos dos mitos, depois que eles foram dessacralizados. E não existe obra literária, antiga ou moderna, que não tenha raízes nessas narrativas ancestrais.
Não é difícil concluir que mitos e contos folclóricos são a matéria-prima do subgênero (pertencente aos gêneros romance e novela) que chamamos de Literatura Fantástica. Por um motivo ou outro, acabaram incluídas nesse amplo “rótulo” tendências tão distintas quanto o que chamamos de Literatura Gótica, de Horror, de Ficção Científica, de Fantasia. Esses subgêneros propiciaram ainda o surgimento de outro sub-subgênero: o dos livros ligados aos RPGs (Role-Playing Games, jogos de interpretação em que o jogador representa um personagem, em ambientações características dos universos de fantasia), e que podem pertencer a três tipos: os livros-jogos (também chamados aventuras-solo), os complexos livros de regras para jogar, e as novelas elaboradas em torno de elementos de determinados sistemas de jogo. Poderámos ainda mencionar as HQs, que chafurdam no fantástico e, hoje, são também um caminho consolidado para a expressão literária.
Voltando no tempo, vamos encontrar muito fantástico na Literatura Clássica; inúmeros autores utilizaram elementos de mitologia antiga em suas manifestações líricas e épicas. Já na Era Medieval, na Europa, testemunhamos um choque entre o pensamento cristão e o pagão, evidente nas canções, poemas trovadorescos e lais: os velhos deuses e heróis foram, aos poucos, dando lugar a um fervor religioso crescente que abominava tudo que pudesse ser rotulado de “satânico”... Além disso, na Idade Média houve o surgimento dos romances viejos, que dariam origem ao romance cortês e às novelas de cavalaria. Nessas obras, embora arcaicas e hoje de complexa leitura, existe grande misticismo – e permaneceram em seus enredos certos elementos pagãos que reconhecemos com facilidade: heróis, feiticeiros, espectros, animais míticos, objetos mágicos, seres elementais (são estes os seres ligados aos quatro elementos, ar, água, terra, fogo – as ninfas, silfos, elfos, náiades, goblins e outros).
Ao aproximar-se o Renascimento, a partir do século XV, vemos na literatura uma busca de equilíbrio entre o pensamento cristão ea filosofia greco-romana; persegue-se um humanismo que se sobreponha ao exacerbado misticismo medieval. Apesar disso, aqueles mesmos elementos fantásticos continuam presentes, nesse período que gerou autores como Cervantes, Shakespeare, Camões, Dante. E, nas obras de todos eles, ainda trombamos com seres mágicos, míticos, sobrenaturais.
Seguindo em nossa viagem temporal, ao chegarmos ao período Pré-Romântico (entre 1700 e 1800) vemos a consagração da forma literária do Romance, marcado por novelas de cavalaria e romances picarescos medievais repletos de aventuras heroicas. Diz Ítalo Calvino no livro Contos Fantásticos do Século XIX que o conto fantástico propriamente dito nasce da especulação filosófica entre os séculos XVIII e XIX:
'Seu tema é a relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção, e a realidade do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda. O problema da realidade daquilo que se vê – coisas extraordinárias que talvez sejam alucinações projetadas por nossa mente; coisas habituais que talvez ocultem, sob a aparência mais banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora – é a essência da literatura fantástica, cujos melhores efeitos se encontram na oscilação de níveis de realidade inconciliáveis'.
Ainda segundo Calvino, a literatura fantástica nasceu com o Romantismo alemão – é fácil fazer a ligação do povo alemão, também chamado Godo, ou Gótico, com o que hoje chamamos de novela gótica. O autor mais importante nessa vertente seria Hoffmann. Os autores ingleses também foram fundamentais no estabelecimento de uma literatura que privilegia a narrativa fantasiosa: Poe é considerado o mais influente de todos, embora alguns autores acreditem que a primeira novela de terror propriamente dita seja o Castelo de Otranto, de Horace Walpole. Já na França teremos até autores como Balzac também se dedicando à narrativa fantástica. Foi ainda um francês, Galland, que traduziu As 1001 Noites, trazendo à Europa o sabor das narrativas árabes, repletas de uma fantasia peculiar, com a presença de djins e magos.
Na imensa lista de nomes ligados ao Romantismo, é difícil, na verdade, encontrar quem não tenha escrito ao menos alguns contos em que imperam o maravilhoso, o extraordinário, o fantasmagórico. Em muitos textos nos defrontamos tanto com seres míticos e fantasmas, quanto com cientistas insanos e detetives inusitados. Nessa época, aliás, é que nasceram alguns dos vários compartimentos que até então estavam entranhados, porém separar-se-iam no futuro, embora acabassem incluídos na mesma “prateleira”, por assim dizer:
* O romance de aventuras marítimas da época daria origem à ficção científica; de Daniel Defoe a Jules Verne, passando por H.G.Wells, ele abriria o caminho para Ray Bradbury, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov.
* O romance gótico em si – aventuras fantasmagóricas, urbanas e sinistras, que gerariam as novelas vampíricas, o gênero específico de Terror e até o universo Cyberpunk; aqui os ingleses foram mestres, com Mary Shelley, Robert Louis Stevenson e Bram Stoker, prenunciando autores como H. P. Lovecraft, Anne Rice, Stephen King.
* O romance de mistério, que começa com Wilkie Collins e Edgard Alan Poe, avô do atual gênero policial.
* O romance de imaginação. Segundo a Profª Nelly Novaes Coelho, temos neste “compartimento” as 'obras em que a fantasia transfigura a realidade cotidiana'; nesta vertente incluiríamos não apenas enredos com estrutura de contos de fada, e os “mundos inventados” tão comuns hoje em dia, mas também o Realismo Mágico latino-americano. Neste caminho teremos autores tão diversos quanto Kafka, Jorge Luís Borges e Gabriel Garcia Márquez; e os muitos autores de língua inglesa, que deixaram sua marca ao criar não apenas alguns contos e seus personagens, porém universos inteiros: J.R.R. Tolkien, C.S.Lewis, Ursula Le Guin, Marion Zimmer Bradley, Diana Wynne Jones, Frank Herbert (que, apesar de ser rotulado como autor de ficção científica, também transita por aqui). Hoje, não podemos deixar de citar o influente autor e roteirista Neil Gaiman.
* Acrescentaríamos ainda uma categoria satírica, reunindo os autores que satirizam esses universos e tecem novos clássicos, assim como Cervantes gerou o que talvez seja o maior de todos os clássicos ao satirizar o Romance de Cavalaria... Temos então obras como O Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams ou A Cor da Magia e suas seqüências, por Terry Pratchett.
Mais uma vez recorrendo a Calvino, encontramos uma análise de Tzvetan Todorov, afirmando que na verdade o que distingue o “fantástico” narrativo é a 'perplexidade diante de um fato inacreditável, a hesitação entre uma explicação racional e realista e o acatamento do sobrenatural'.
Tolkien solucionou esse embate entre o crível e o incrível, a realidade e a não-realidade, criando os conceitos de Mundo Primário e Mundo Secundário. Em resumo: o mundo em que vivemos é o Primário, mas o autor de ficção cria um universo Secundário derivado dele, em que o leitor penetra ao fruir da Literatura; e é nesse mundo que tudo é possível, desde que respeitadas as leis particulares daquele universo. Trata-se do Pacto Autor-Leitor, também denominado 'Suspensão da Descrença'. Ao ler fantasia, concordamos em abdicar de nossos conceitos e preconceitos modernos; embarcamos na leitura conscientes de que, na Terra-média, poderemos virar a estrada e ser atacados por um bando de orcs; de que numa Londres Gótica ou na Transilvânia haverá sombras ameaçadores em cada esquina; de que em Nárnia é preciso conformar-se à ética de um Leão; e de que, em muitos mundos, não se deve zombar de velhos estranhos que levam cajados cheios de inscrições rúnicas, ou levar para casa certas pedras estranhas que podem ser ovos de dragões...
O mais fantástico da Literatura Fantástica, porém, é que ela se mantém mais forte que nunca com o passar dos anos, dando origem não apenas a vastas bibliotecas mas a inúmeros filmes, HQs, peças de teatro e seriados derivados de seus enredos - e isso apesar de ser considerada um gênero menor pela crítica especializada...
Quanto a nós, leitores contumazes, continuamos ignorando os críticos e abdicando de nossos Mundos Primário, para mergulhar com o maior prazer possível nesses Mundos Secundários em que, talvez, encontremos não apenas a fantasia – mas a nós mesmos.
Leituras sugeridas:
CALVINO, Ítalo (org.). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
COELHO, Nelly Novaes. Conto de fadas, O. São Paulo: Ática, 1987 / Literatura e Linguagem. São Paulo: Vozes, 1994.
LOPES, Reinaldo José. A Árvore das Estórias: Uma proposta de tradução para Tree and Leaf, de J.R.R. Tolkien.
Dissertação de mestrado da FFLCH – USP, 2006. Em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-10082007-154453/pt-br.php